Tente imaginar como seria projetar uma cidade inteira do zero; desenhar cada uma de suas ruas, casas, edifícios comerciais, praças e espaços públicos. Uma folha em branco onde tudo é possível e sua única missão é criar uma cidade com identidade própria. Talvez esse seja o sonho de todo arquiteto e urbanista, e para a sorte de alguns poucos felizardos, esse sonho pode muito bem se tornar realidade em um futuro próximo.
Ao longo das últimas duas décadas, cidades inteiras foram construídas do zero em uma escala sem precedentes, a maioria delas na Ásia, Oriente Médio, África e também na América Latina. Além disso, o nosso planeta conta atualmente com mais de 150 novas cidades em processo de implementação. Esta nova tipologia de desenvolvimento urbano tem se mostrado particularmente sedutora em países de economia emergente, iniciativas propagandeadas como elementos estratégicos capazes de impulsionar o crescimento econômico e atrair novos investimentos.
De acordo com matéria recentemente publicada pela Forbes, “este novo movimento na industria da construção civil, no qual estamos atualmente metidos até o pescoço, é um processo de desenvolvimento econômico e também social ainda bastante misterioso e desconhecido além de mal interpretado.”
Sarah Moser, especialista no assunto, professora associada do Departamento de Geografia da McGill University e diretora do New Cities Lab, descreve estes novos projetos de escala urbana e territorial como “tentativas de criar novas áreas de expansão urbana autossuficientes, geograficamente isoladas de áreas anteriormente urbanizadas e cidades pré-existentes.” Em contraste com os subúrbios ou bairros periféricos das grandes cidades, estes novos desenvolvimentos são estruturas urbanas concebidas para cumprir um propósito específico — com inúmeras possibilidades a serem exploradas e portanto, comercializadas.
Uma característica comum entre muitas destas cidades que parecem brotar da terra no meio do nada é a tendência de serem comercializadas com uma marca, um produto—muito parecida com as startups por exemplo. A Cidade Econômica do Rei Abdullah (KAEC), na Arábia Saudita, com seus diversos clubes de campo, condomínios fechados e shoppings de luxo, está sendo comercializada como o principal centro de produção e logística da região, uma cidade que já está atraindo muitos investimentos e milhares de jovens em busca de novas oportunidades. Em seu website, a Cidade Econômica do Rei Abdullah conta com uma série de “espaços públicos integrados às margens do Mar Vermelho”, um bairro residencial com “um campo de golfe” e um “luxuoso clube de campo.” Concebida no contexto de um projeto mais amplo que envolve não uma, mas quatro Cidades Econômicas, a Cidade do Rei Abdullah faz parte de um megaprojeto com investimentos de até 100 bilhões de dólares que pretende diversificar a economia da Arábia Saudita, diminuindo a sua dependência da industria de combustíveis fósseis. Inspirada no Vale do Silício Americano, a NEOM é a mais audaciosa destas quatro cidades, uma megalópole que contará com um investimento de 500 bilhões de dólares (cobrindo uma área até 33 vezes maior do que a cidade de Nova Iorque) e que está sendo concebida como um novo centro de energia renovável, biotecnologia, manufatura, mídia e entretenimento. Auto-proclamada “um catalizador do progresso econômico e desenvolvimento humano”, a NEOM pretende ser um laboratório vivo para a implementação de novas tecnologias e soluções de mobilidade autônoma (incluindo táxis voadores e drones), um porto operado por inteligência artificial além de ser completamente abastecida por uma ampla rede de energias renováveis.
Para facilitar a implementação e o desenvolvimento das Cidades Econômicas da Arábia Saudita, as autoridades locais criaram uma série de Zonas Econômicas Especiais (SEZs), territórios específicos que desfrutam de uma maior liberdade formal, econômica e principalmente comercial em relação às cidades já estabelecidas. Essa é uma estratégia que tem sido amplamente utilizada em muitas novas cidades que estão sendo construídas hoje ao redor do mundo, pois a combinação de leis e códigos de obras mais flexíveis com vistosos incentivos fiscais, tornam estas cidades mais propícias à injeção de capital estrangeiro.
Mas como fomos parar aqui? Embora tenhamos testemunhado um aumento substancial na construção de novas cidades ao longo dos últimos 20 anos, esta prática está longe de ser um fenômeno da modernidade. A construção de novas cidades como estratégia de ocupação do território é uma atividade que remonta à antiguidade e que mais recentemente se tornou amplamente difusa nos quatro cantos do mundo—de Brasília à Chandigarh. Trazendo esta discussão para o presente, o que aconteceu nestas duas últimas décadas que nos levou a esta urgência por construir tantas novas cidades? Sarah Moser se refere a este fenômeno como um reflexo, ou sintoma, da atual conjuntura global, incluindo a transformação da industria da construção civil em uma das principais fontes de investimento econômico e portanto, de geração de lucro; a acensão do neoliberalismo assim como a crescente influência das empresas do ramo de tecnologia na difusão e desenvolvimento das chamadas cidades “inteligentes”. Esta série de confluências, segundo Moser, faz com que estas cidades sejam um território extremamente atraente para os chamados “gigantes da tecnologia”, como a Cisco, a Google, a Microsoft e a IBM, as quais têm mostrado grande interesse na implementação desta nova tipologia de cidade. A “cidade inteligente de Songdo”, construída recentemente na Coreia do Sul, é uma das principais pioneiras deste novo fenômeno urbano. Ocupando um aterro de aproximadamente 600 hectares, esta cidade de 40 bilhões de dólares foi construída para testar muitas das novas tecnologias inteligentes desenvolvidas pela Cisco.
A justificativa oficial para a construção de novas cidades parece ser muito convincente. Estes projetos costumam ser propagandeados como uma grande oportunidades para atrair novos investimentos, principalmente em se tratando de países de economias emergentes. Da Cidade de Masdar, projetada por Norman Foster nos Emirados Árabes Unidos, à Eko Atlantic na Nigéria—que ficou conhecida como a “nova Dubai” no continente Africano—, estes projetos visionários e aparentemente utópicos representam a esperança de um futuro melhor e mais sustentável. Entretanto, o que é mais problemático na comercialização de estruturas urbanas que sequer saíram do papel é a completa incompatibilidade entre os planos dos empreendedores e a realidade econômica destes países. Uma estratégia muito “inteligente”, utilizada pelas autoridades e incorporadores como uma forma de criar dinheiro—e não apenas cidades—a partir do nada. Isso porque as partes envolvidas sabem de antemão para onde os investimentos serão direcionados, podendo comercializar por preços exorbitantes territórios que haviam sido comprados anteriormente por preço muito baixos. Em outras palavras, interesses políticos e econômicos prevalecem sobre questões sociais ou até mesmo humanas. Isso significa que, estas novas cidades estão sendo concebidas, em primeiro lugar e acima de tudo, como territórios especulativos. A cidade de Putrajaya, na Malásia, concebida como uma “cidade jardim inteligente” para 350 mil habitantes, está ainda muito longe de atingir esta meta, tendo recebido apenas 90 mil.
Isso tudo nos leva a uma única e simples pergunta: para quem essas novas cidades estão sendo construídas? Condomínios fechados, clubes de campo, SPAs e shopping centers de luxo são testemunhas de que estas cidades nada mais são que sinônimos de exclusão e lucro. Infelizmente, ao analisarmos alguns destes projetos, não encontramos nenhum bairro de renda mista, creches ou escolas públicas. Mais alarmantes ainda são as ameaças de despejo e a relocação forçada das comunidades que ocupam estes territórios, como no caso da NEOM, que irá desalojar uma comunidade autóctone de cerca de vinte mil pessoas.
Dito isso, seria suficientemente plausível justificarmos a construção de cidades inteiras apenas para por à prova novas tecnologias, formas de projetar, administrar e gerir cidades? Embora ainda seja muito cedo para tirarmos qualquer conclusão, há algo que precisa ser dito sobre as possíveis oportunidades que se apresentam com a construção de amplas infraestruturas urbanas a partir do zero. Em um artigo recentemente publicado pela NewCities, Sarah Moser e Adam Cutts, explicam que a construção de novas cidades do zero—quando feita de forma coerente e consciente—nos permitiria corrigir uma série de erros do passado, abordando questões como a escassez de moradias, a inclusão social, o direito à cidade, assim como seria possível implementar sistemas de mobilidade mais eficientes bem como estratégias de ocupação do território que resultem em um menor impacto ambiental.
Entretanto, é importante ressaltar o fato de que muitas destas novas cidades estão sendo utilizadas como uma ferramenta de branding, um potencial através da qual países que foram colonizados podem reivindicar uma nova identidade. E não precisamos ir muito longe para encontrarmos exemplos alinhados com esta visão. O Equador está investindo alto na chamada Cidade do Conhecimento Yachay, uma iniciativa que espera ressignificar a identidade do país e sua economia, iniciando um processo de transformação que pretende fazer do Equador um país que exporta conhecimento e tecnologia para o mundo todo. Lançada em 2012, a Cidade do Conhecimento Yachat é um projeto que pretende diversificar uma área de mais de 4.500 hectares, combinando áreas verdes, um parque tecnológico e até uma universidade pública voltada para a pesquisa em novas tecnologias e inovação científica. Nas palavras do gerente do projeto, Héctor Rodríguez, “esperamos que este projeto tenha um grande impacto no desenvolvimento da economia nacional”—algo que só o tempo dirá, mas fato é que a construção de uma nova cidade como esta pode ser a chave para que o país alcance esses objetivos.
Ao falar sobre o futuro das cidades, não podemos deixar de nos perguntar sobre os impactos da pandemia em projetos como este. Considerando o desafio que a recente crise sanitária mundial representa para os governos locais, Sarah Moser antecipa que “muitos países encontrarão uma saída bastante simples com a terceirização de muitos aspectos da construção destas cidades. Isso significa que o que está por vir talvez seja um boom sem precedentes de projetos e construção de novas cidades, possivelmente ainda maior do que o crescimento que se seguiu à crise financeira mundial de 2008”. Além disso, ela prevê uma demanda ainda maior da população de classe alta por condomínios fechados e de alta segurança— um processo de auto-segregação que só incrementará a desigualdade em nossos ambientes urbanos. Outros fatores que não devemos ignorar é a questão da ciber-segurança ou vigilância, uma vez que os governos de países de economia emergente provavelmente serão mais receptivos a empresas de alta tecnologia que procuram testar seus novos produtos e sistemas em contextos onde as políticas de privacidade ainda não estão devidamente estabelecidas.
Considerando que até 2050 68% da população mundial se concentrará em áreas urbanas, a construção de novas cidades se apresenta como uma ótima oportunidade para experimentar e desenvolver uma série de mecanismos, sistemas e novas tecnologias. Enquanto este fenômeno continua a promover o papel do setor privado na mobilização de capital e investimentos necessários para concretização destes projetos, é alarmante a passividade dos governos ao cederem às empresas do setor privado o direito de construir “nossas” cidades—sem saber exatamente para quem essas cidades estão sendo construídas. Na era do neoliberalismo econômico e de um mercado dominado pelos gigantes da tecnologia, projetar e construir cidades capazes de atender às reais demandas da população será, sem dúvida, o nosso maior desafio.
Este artigo é parte do Tópico do ArchDaily: O Futuro das Cidades. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos mensais. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.